31 de jul. de 2008

Sinopse: "A filosofia da arte de Machado de Assis"

Prof. Patrick Pessoa (Doutor em Filosofia pelo IFCS/UFRJ, pós-doutorando PUC-Rio): "A filosofia da arte de Machado de Assis"Sinopse: A tentação de atribuir uma filosofia a um autor de ficção como Machado de Assis não é pequena. Afinal, sua obra é das mais pródigas em referências aos grandes vultos da história da filosofia, e não poucos dentre os seus personagens nutrem a pretensão de ser filósofos. Será, no entanto, que o simples fato de haver muitos filósofos e muitas filosofias na obra de Machado de Assis nos autoriza a falar em uma pretensa "filosofia de Machado de Assis"?Como será discutido na palestra, há algo de paradoxal na tentativa de muitos dos críticos da obra machadiana de lhe conferirem maior respeitabilidade atribuindo a seu autor uma filiação filosófica determinada, seja aos céticos, aos moralistas franceses ou a Schopenhauer. Ao defenderem a idéia de que a grandeza de um autor de ficção está associada ao fato de possuir uma filosofia, tais críticos, conscientemente ou não, acabam por rebaixar a literatura, convertendo-a em mera ilustração da "profundidade" dos filósofos. Ao mesmo tempo, porém, eis o paradoxo, tampouco fazem jus à dignidade da filosofia, que consiste justamente na prontidão para investigar o óbvio, para questionar os próprios pressupostos. Sob essa ótica, uma abordagem da filosofia de Machado de Assis que seja ela própria filosófica deve antes de mais nada formular a seguinte questão: como é possível abordar filosoficamente um clássico da literatura como as Memórias póstumas de Brás Cubas sem desconsiderar a proximidade entre filosofia e literatura e ao mesmo tempo sem negligenciar a sua diferença?

30 de jul. de 2008

SOLIDARIEDADE - RUBEM ALVES

Se te perguntarem quem era essa que às areias e gelos quis ensinar a primavera...": é assim que Cecília Meireles inicia um dos seus poemas. Ensinar primavera às areias e gelos é coisa difícil. Gelos e areias nada sabem sobre primaveras... Pois eu desejaria saber ensinar a solidariedade a quem nada sabe sobre ela. O mundo seria melhor. Mas como ensiná-la?
Será possível ensinar a beleza de uma sonata de Mozart a um surdo? Como? - se ele não ouve. E poderei ensinar a beleza das telas de Monet a um cego? De que pedagogia irei me valer para comunicar cores e formas a quem não vê? Há coisas que não podem ser ensinadas. Há coisas que estão além das palavras. Os cientistas, filósofos e professores são aqueles que se dedicam a ensinar as coisas que podem ser ensinadas. Coisas que podem ser ensinadas são aquelas que podem ser ditas. Sobre a solidariedade muitas coisas podem ser ditas. Por exemplo: acho possível desenvolver uma psicologia da solidariedade. Acho também possível desenvolver uma sociologia da solidariedade. E, filosoficamente, uma ética da solidariedade... Mas os saberes científicos e filosóficos da solidariedade não ensinam a solidariedade, da mesma forma como a crítica da música e da pintura não ensina às pessoas a beleza da música e da pintura. A beleza é inefável; está além das palavras.
Palavras que ensinam são gaiolas para pássaros engaioláveis. Os saberes, todos eles, são pássaros engaiolados. Mas a solidariedade é um pássaro que não pode ser engaiolado. Ela não pode ser dita. A solidariedade pertence a uma classe de pássaros que só existem em vôo. Engaiolados, esses pássaros morrem.
A beleza é um desses pássaros. A beleza está além das palavras. Walt Whitman tinha consciência disso quando disse: "Sermões e lógicas jamais convencem. O peso da noite cala bem mais fundo em minha alma..." Ele conhecia os limites das suas próprias palavras. E Fernando Pessoa sabia que aquilo que o poeta quer comunicar não se encontra nas palavras que ele diz: ela aparece nos espaços vazios que se abrem entre elas, as palavras. Nesse espaço vazio se ouve uma música. Mas essa música - de onde vem ela se não foi o poeta que a tocou?
Não é possível fazer uma prova colegial sobre a beleza porque ela não é um conhecimento. E nem é possível comandar a emoção diante da beleza. Somente atos podem ser comandados. Ordinário! Marche!", o sargento ordena. Os recrutas obedecem. Marcham. À ordem segue-se o ato. Mas sentimentos não podem ser comandados. Não posso ordenar que alguém sinta a beleza que estou sentindo.
O que pode ser ensinado são as coisas que moram no mundo de fora: astronomia, física, química, gramática, anatomia, números, letras, palavras. Mas há coisas que não estão do lado de fora. Coisas que moram dentro do corpo. Enterradas na carne, como se fossem SEMENTES À ESPERA...
Sim, sim! Imagine isso: o corpo como um grande canteiro! Nele se encontram, adormecidas, em estado de latência, as mais variadas sementes - lembre-se da estória da Bela Adormecida! Elas poderão acordar, brotar. Mas poderão também não brotar. Tudo depende... As sementes não brotarão se sobre elas houver uma pedra. E também pode acontecer que, depois de brotar, elas sejam arrancadas... De fato, muitas plantas precisam ser arrancadas, antes que cresçam. Nos jardins há pragas: tiriricas, picões...
Uma dessas sementes tem o nome de "solidariedade". A solidariedade não é uma entidade do mundo de fora, ao lado de estrelas, pedras, mercadorias, dinheiro, contratos. Se ela fosse uma entidade do mundo de fora ela poderia ser ensinada. A solidariedade é uma entidade do mundo interior. Solidariedade nem se ensina, nem se ordena, nem se produz. A solidariedade, semente, tem de nascer.
Veja o ipê florido! Nasceu de uma semente. Depois de crescer não será necessária nenhuma técnica, nenhum estímulo, nenhum truque para que ele floresça. Angelus Silésius, místico antigo, tem um verso que diz: " A rosa não tem por quês. Ela floresce porque floresce." O ipê floresce porque floresce. Seu florescer é um simples transbordar natural da sua verdade.
A solidariedade é como o ipê: nasce e floresce. Mas não em decorrência de mandamentos éticos ou religiosos. Não se pode ordenar: "Seja solidário!" Ela acontece como simples transbordamento. Da mesma forma como o poema é um transbordamento da alma do poeta e a canção um transbordamento da alma do compositor...
Disse que solidariedade é um sentimento. É esse o sentimento que nos torna humanos. É um sentimento estranho - que perturba nossos próprios sentimentos. A solidariedade me faz sentir sentimentos que não são meus, que são de um outro. Acontece assim: eu vejo uma criança vendendo balas num semáforo. Ela me pede que eu compre um pacotinho das suas balas. Eu e a criança - dois corpos separados e distintos. Mas, ao olhar para ela, estremeço: algo em mim me faz imaginar aquilo que ela está sentindo. E então, por uma magia inexplicável, esse sentimento imaginado se aloja junto aos meus próprios sentimentos. Na verdade, desaloja meus sentimentos, pois eu vinha vindo, no meu carro, com sentimentos leves e alegres, e agora esse novo sentimento se coloca no lugar deles. O que sinto não são meus sentimentos. Foi-se a leveza e a alegria que me faziam cantar. Agora, são os sentimentos daquele menino que estão dentro de mim. Meu corpo sofre uma transformação: ele não é mais limitado pela pele que o cobre. Expande-se.
Ele está agora ligado a um outro corpo que passa a ser parte dele mesmo. Isso não acontece nem por decisão racional, nem por convicção religiosa e nem por um mandamento ético. É o jeito natural de ser do meu próprio corpo, movido pela solidariedade. Acho que esse é o sentido do dito de Jesus que temos de amar o próximo como amamos a nós mesmos. Pela magia do sentimento de solidariedade o meu corpo passa a ser morada do outro. É assim que acontece a bondade.
Mas fica pendente a pergunta inicial: como ensinar primaveras a gelos e areias? Para isso as palavras do conhecimento são inúteis. Seria necessário fazer nascer ipês no meio dos gelos e das areias! E eu só conheço uma palavra que tem esse poder: a palavra dos poetas. Ensinar solidariedade? Que se façam ouvir as palavras dos poetas nas igrejas, nas escolas, nas empresas, nas casas, na televisão, nos bares, nas reuniões políticas, e, principalmente, na solidão...
O menino me olhou com olhos suplicantes.
E, de repente, eu era um menino que olhava com olhos suplicantes...
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19 de jul. de 2008

A DIFERENÇA ENTRE O AMOR E AMIZADE


A diferença entre amor e amizade...

O Amor é mais sensível,

a Amizade mais segura.

O Amor dá-nos asas ,

a Amizade o chão.

No Amor há mais carinho,

na Amizade compreensão.

O Amor é plantado

e com carinho cultivado,

a Amizade, com troca de alegria e tristeza,

torna-se uma grande e querida

companheira.
Mas quando o Amor é sincero,

vem com um grande amigo,

e quando a Amizade é concreta,

é cheia de amor e carinho.

Quando se tem um amigo

ou uma grande paixão,

ambos os sentimentos coexistem...

W. Shakespeare

EMBRIAGUE-SE



E se alguma vez sobre os degraus de um palácio, sobre a verde relva de uma vala, na sombria solidão de teu quarto, tu te encontras com a embriaguez já minorada ou finda, peça ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo aquilo que gira, a tudo aquilo que voa, a tudo aquilo que canta, a tudo aquilo que fala, a tudo aquilo que geme. Pergunte que horas são.

E o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio, te responderão.

É hora de se embriagar !!!

Para não ser como os escravos martirizados do tempo, embriaga-te.

Embriaga-te sem cessar.

De vinho, de poesia ou de virtude. A teu gosto...
Charles Baudelaire




TRADUZIR-SE



Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim

pesa, pondera:outra parte

delira.

Uma parte de mim

alomoça e janta:

outra parte

se espanta.

Uma parte de mim

é permanente:
outra parte

se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,linguagem.

Traduzir uma parte

na outra parte_

que é uma questão

de vida ou morte _

será arte?

Ferreira Gullar

CANTIGA PARA NÃO MORRER


Quando você for se embora,

moça branca como a neve,

me leve.

Se acaso você não possa

me carregar pela mão,

menina branca de neve,

me leve no coração.

Se no coração não possa

por acaso me levar,

moça de sonho e de neve,

me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa

por tanta coisa que leve

já viva em seu pensamento,

menina branca de neve,

me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar

ACEITARTÁS O AMOR COMO EU O ENCARO?

Aceitarás o amor como eu o encaro ?
......Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.

Mário de Andrade

16 de jul. de 2008

PESQUISA ENTRE UNIVERSITÁRIOS

PESQUISA Entre os dias 19 e 30 de maio de 2008 foi perguntado a 200 estudantes de letras de 10 universidades: Quais eram os melhores livros, de autores brasileiros, em todos os tempos? Cada participante poderia indicar um número máximo de 10 livros, podendo inclusive, indicar mais de um livro de um mesmo autor.
Participaram da pesquisa alunos do curso de letras da UFG, UNB, UCG, UEG, UNIP, UFRGS, UFRGS, UFRJ, USP. A pesquisa foi feita pelo Laboratório de Pesquisas de Opinião Pública e de Mercado e não tem valor científico.
1 - Macunaíma (1928) - Mário de Andrade - 134 citações
2 - Grande Sertão: Veredas (1956) - Guimarães Rosa - 123 citações
3 - A Paixão Segundo G.H. (1964) - Clarice Lispector - 118 citações
4 - Memórias póstumas de Brás Cubas (1880) - Machado de Assis - 99 citações
5 - Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971) - Ariano Suassuna - 80 citações
6 - O Tempo e o Vento (1949) - Érico Veríssimo - 77 citações
7 - Poema Sujo (1976) - Ferreira Gullar - 61 citações
8 - Catatau (1975) - Paulo Leminski - 54 citações
9 - Os Cavalinhos de Platiplanto (1959) - José J. Veiga - 47 citações
10 - O Vampiro de Curitiba (1965) - Dalton Trevisan - 36 citações

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“Se sou Alegre ou sou triste?...
Francamente, não o sei.
A tristeza em que consiste?
Da alegria o que farei?
Não sou alegre nem triste.
Verdade, não sei que sou.
Sou qualquer alma que existe
E sente o que Deus fadou.
Afinal, alegre ou triste?
Pensar nunca tem bom fim..
.Minha tristeza consiste
Em não saber bem de mim..
.Mas a alegria é assim..."
(Fernando Pessoa)

14 de jul. de 2008


CIVITAS MATER *
José Barnabé de Mesquita
"Meu carinho filial e meu sonho de poeta
Vêem-te, ó doce cidade ideal dos meus amores,
Em teu plácido vale, entre colinas, quieta,
Como um Éden terreal de encantos sedutores.
Tuas várzeas gentis estreladas de flores
Sagram-te do sertão a Princesa dileta
E o Sol te elege, quando, em íris multicores
Na esmeralda dos teus palmares se projeta
.Nenhuma outra cidade assim à alma nos fala,
Dos teus muros senis a tradição se exala
E a nossa História inteira em teu brasão reluz.
Ainda hoje em teu ambiente, ó minha urbe querida,
Paira dos teus heróis a sombra estremecida- Nobre Vila Real do Senhor Bom Jesus"!
* Poema dedicado à cidade de Cuiabá.

7 de jul. de 2008

A ARTE DE GUILHERME RICARDO DICKE

A arte de Ricardo Dicke
Chega ao público o décimo livro de Ricardo Dicke, o escritor mais premiado e erudito de Mato Grosso Lorenzo FalcãoDa EditoriaEle não faz concessões e escreve torrencialmente. Descarrega sua inspiração de forma autoral encurralando leitores contra as paredes de seus respectivos conhecimentos. É capaz de saltar de narrativas vertiginosas que nos fazem lembrar dos filmes de Quentin Tarantino, seara onde predomina a ação, para uma prosa mais filosófica cheia de parábolas e referências eruditas, num estilo que se assemelha à própria Bíblia. Assim é Ricardo Guilherme Dicke, escritor completo e complexo. Mato-grossense. Que enche de orgulho o povo desta terra. Que leva o nome deste estado a projetar-se nacional e internacionalmente, volta e meia, pontuando na mídia através de suas proezas literárias. E isso já dura quase quatro décadas. Nascido na localidade de Raizama, município de Chapada dos Guimarães, uma corrutela que provavelmente sucumbiu às águas da Usina de Manso, Ricardo lança hoje à noite, a partir das 19:00, no Museu da Imagem e do Som de Cuiabá – Misc, sua décima obra: “Toada do Esquecido & Sinfonia Eqüestre”, dois contos longos com sabor de novelas. Uma bela oportunidade aos leitores menos acostumados à erudição para penetrar no universo dickiano, já que são textos mais curtos e que irão requerer menos esforço para a leitura, considerando que a maioria de seus títulos ultrapassa as 300 páginas. Há que se registrar as distinções entre as duas narrativas que foram escritas em épocas diferentes. “Toada do Esquecido” é mais antigo. Deve ter sido escrito há mais ou menos 15 anos, senão mais do que isso. O próprio autor não se lembra exatamente. Um grupo de bandidos comete um crime e foge pelo sertão cerrado mato-grossense numa Kombi velha. Personagens grotescos, caricatos, protagonizam diálogos e situações extravagantes e vão revelando o teor de suas almas perdidas a desbravar os limites do comportamento humano, demasiado humano. Já “Sinfonia Eqüestre”, escrito há aproximadamente dois anos, revela a literatura de Dicke mais pautada no gesto filosófico, mas de intensa dramaticidade, com o enredo se desenvolvendo praticamente num ambiente familiar. Mas é querer muito e dizer pouco qualquer tentativa de dissecar com exatidão o estilo e a estrutura narrativa deste autor genial, mesmo que o objeto literário em questão – que é o caso, não provenha de escritos quilométricos como Dicke costuma praticar. Escritos que partem da sua singular experiência de vida e também da sua bagagem cultural vasta onde, além de literatura e filosofia, registra-se o conhecimento de línguas como inglês, alemão, francês, italiano e espanhol, além de português. Pacato e solitário é seu cotidiano no bairro Coophema, região do Coxipó. Mora com a esposa Adélia, a filha Ariadne e os netos Larissa e Cleiton. Costuma receber visitas de uns poucos amigos com quem compartilha seus assuntos e sua brilhante criação literária que já alimentou peças teatrais e até um documentário, exibido em rede nacional de televisão e que teve como ponto de partida seu romance “Cerimônias do Esquecimento”. Outro livro seu, “O Salário dos Poetas”, foi adaptado para o teatro e encenado em Portugal ano passado. Esse mesmo espetáculo, com algumas alterações, foi apresentado há poucos dias num festival de teatro em Florianópolis (SC). “Tudo que envolve Dicke dá certo e é sucesso”, disse certa vez o cineasta Bruno Bini. Artistas como Romeu Lucialdo, Amauri Tangará e Eduardo Ferreira, entre outros, que o digam. Apesar de ter pendurado seus apetrechos das artes plásticas – ele já mostrou muito talento entre cores e traços, está sendo arquitetada, ainda para este ano, uma exposição de suas obras que estão espalhadas por aí e também em sua casa. Gervane de Paula é quem está por trás dessa empreitada. Dicke lembra-se orgulhoso e saudoso de uma exposição que fez, em 1965, no antigo Grande Hotel (hoje Secretaria de Estado de Cultura), antes de chafurdar quase que radicalmente na linguagem literária. “Vendi todos os quadros e ganhei um bom dinheiro, com o qual, comprei uma chácara”, rememora o artista. Há um projeto novo, desafiador, que também anda balançando o coração de Ricardo e que envolve o maestro Leandro Carvalho, da Orquestra de Câmara de Mato Grosso: escrever um libreto para uma ópera. Mas isso ainda está numa fase, digamos, pré-embrionária. Literatura – Quase todos os seus livros conquistaram prêmios nacionais de expressão. Mas sua estréia com “Deus de Caim”, em 1968, foi retumbante. Ele havia enviado dois títulos para um concurso que tinha como jurados nada mais nada menos que Guimarães Rosa, Jorge Amado e Antônio Olinto. “Dicke se apresentara ao concurso: Deus de Caim e Décima Segunda Missa. Ambos muito bons. O primeiro nos pareceu mais bem realizado. Rosa falou de sua força envolvente, de sua impetuosidade vocabular. Jorge Amado realçou sua narrativa, sua coragem de narrar sem recursos falsamente literários. Ficamos, os três, certos de que ali estava um romancista de tipo novo, um homem capaz de abalar nossa ficção”, escreveu Olinto ao prefaciar o título de estréia de Dicke. “Toada do Esquecido & Sinfonia Eqüestre” chega ao público através de ótima estratégia envolvendo as editoras Cathedral Publicações e Carlini Caniato. “Cabe ao leitor o deleite de se embrenhar na obra deste ser(tão) fantástico que é Ricardo Guilherme Dicke”, escreve na orelha do lançamento, Cristina Campos, responsável pela preparação e revisão do livro. Para os amantes da sofisticada escrita de Dicke, que já foi apontado por Hilda Hilst como um dos principais autores brasileiros de todos os tempos, ao lado de Guimarães Rosa e Machado de Assis, outras boas notícias literárias se avizinham. Estão sendo preparados para reedições mais dois títulos do mato-grossense: “Madona dos Páramos” e “Deus de Caim”. É bom, mas ainda é pouco e o universo da materialização literária vai continuar devendo a Ricardo Guilherme Dicke edições de obras inéditas engavetadas e amareladas na memória do autor. “Orkos”, “Como o Silêncio”, “A Décima Segunda Missa” e “Epifanias”, entre outros, ainda hão de ser pauta para mais e melhores peripécias editoriais.
Edição nº 11609 05/09/2006 Diário de Cuiabá

GUILHERME DICKE É DESTAQUE NA IMPRENSA NACIONAL

ESCRITOR MATO-GROSSENSE É DESTAQUE NA IMPRENSA NACIONAL
4/5/2004 15:18
Balcão de Negócios

Pão de ló
O Globo" revela detalhes da obra do escritor Ricardo Guilherme Dicke
MARILU RIBEIROAssessoria/Cultura-MTO escritor mato-grossense, Ricardo Guilherme Dicke (67), concedeu nesta sábado (01.05), uma entrevista ao jornalista do jornal de circulação nacional "O Globo", João Ximenes Braga.
Confira na íntegra a entrevista com Ricardo Guilherme Dicke
Dicke queixa-se do "ostracismo cruel" atribuindo-o sobretudo a sua distância dos grandes centros. Mas, em suas respostas, parece preferir aumentar que desvendar o mistério Dicke.
O Globo: O que acha de ter sido citado por Hilda Hilst ao lado de Rosa e Machado de Assis como um dos gigantes da Literatura?
Ricardo Guilherme Dicke: Senti-me surpreendido, pois é uma grande responsabilidade estar ao lado de Machado de Assis e Guimarães Rosa
O Globo: Você conhecia Hilda?
Dicke: Sim, conhecia-a pessoalmente. Gostávamos fraternalmente. Éramos amigos e trocávamos correspondência, nos comunicávamos por telefone e conversávamos sobre tudo o que existe.
O Globo: O senhor tinha 31 anos quando seu livro de estréia, "Deus de Caim", recebeu um prêmio cujos jurados eram Guimarães Rosa e Antonio Olinto.O que passou pela cabeça do jovem escritor?
Dicke: Tenho a declarar que tirei o quarto lugar nesse prêmio. A mídia fez o resto. E mesmo assim o livro teve grande projeção. Fiquei felicíssimo e sabia que havia aberto as portas da glória.
O Globo: "Rio abaixo dos vaqueiros" e "O Salário dos poetas" têm déspotas como epicentro da narrativa. Um fazendeiro no primeiro, um ditador no outro. Por que o poder e a tirania o fascinam como tema?
Dicke: Poder e tirania são temas que separam estes dois livros dos outros que escrevi. Freudianamente falando, poder e tirania são temas que vêm da influência do meu pai, que era muito bravo. Os livros podem ter a minha crueldade, mas também têm muitas coisas generosas e boas.
O Globo: Ainda falando sobre a temática desses dois livros...Quase não há duas páginas seguidas em que não se fale em morte, no prenúncio da morte, no medo da morte. Por quê?
Dicke: Porque a morte é o maior mistério que existe.
O Globo: Diz-se que o senhor bebia muito. Isso teria atrapalhado sua produção literária?
Dikie: Faz vinte anos que deixei de beber. Beber me prejudicou muito.
O Globo: Uma frase de Blaise Pascal, "O silêncio desses espaços infinitos me apavora", é citada diversas vezes ao longo de "O salário dos poetas".È uma síntese do peso que o horizonte do Pantanal e da Chapada tem na sua literatura?
Dicke: Essa frase de Pascal para mim resume o maior símbolo do mistério que existe no Universo.
O Globo: Além da literatura, como é seu cotidiano, o que o senhor faz atualmente?
Dicke: Sou (funcionário público) aposentado e vivo como um monge. Lendo e screvendo.O Globo: Há previsão de novos livros?
Dicke: Sim, aqui a gente pula atrás de editores. Como não há o que fazer, temos que esperar que nos descubram nos grandes centros. Tenho oito livros prontos para publicar. Nenhum plano porque aqui é a minha Finisterrae.
Obras e premiações do escritor mato-grossense:
- Prêmio Walmap (1967): Seu primeiro romance de estréia "Deus de Caim" cujos jurados foram Jorge Amado e Guimarães Rosa.
- Prêmio Remington (1977): Seu segundo livro "Caieira", considerado por Glauber Rocha, num programa de TV, como leitura obrigatória.
- Prêmio "Madona dos Paramos" (1981)- Seu terceiro título premiado pela Fundação Cultural do Distrito Federal.
- "O último horizonte " (1998)- Último livro a ser lançado comercialmente por uma editora no eixo Rio-São Paulo, estão esgotados e nunca foram reeditados.
- "Rio abaixo dos vaqueiros" e o "Salário dos Poetas" (2001)- Seus dois novos e mais recentes trabalhos viabilizados pela Secretaria de Estado de Cultura, por meio da Lei de Incentivo.
- Encontra-se em fase de finalização um documentário em média metragem sobre Dicke chamado "Cerimônia do esquecimento", produzido para exibição nas emissoras educativas do país. Mais informações podem ser obtidas com o agente do escritor pelo e-mail: lorenzofalcao@hotmail.com

Fonte: Secom/MT

FORÇA, GUILHERME DICKE, NOSSA LITERATURA PRECISA MUITO DE VOCÊ

Escritor de MT está internado em estado grave em hospital de Cuiabá
Ele teve uma parada cardiorespiratória no sábado.
Redação TVCA
O escritor mato-grossense Guilherme Dicke (72) está internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital São Matheus, em Cuiabá. Segundo informações de um amigo da família, Dicke teve uma parada cardiorespiratória neste sábado (5) e o estado de saúde dele é considerado grave.
De acordo com um outro amigo, o professor da Universidade Federal de Mato Grosso Mario Cézar Leite, Guilherme Dicke estava com um problema do coração.

O escritor Ricardo Guilherme Dicke é filho de pai alemão e a mãe é natural do Coxipó do Ouro, situada na Baixada Cuiabana. Ele nasceu em Raizama, município de Chapada dos Guimarães, em 1936.
Guilherme tem experiência como professor, tradutor e jornalista atuando em veículos impressos de Mato Grosso e Rio de Janeiro. Dicke é o mais premiado escritor mato-grossense em todos os tempos, sendo quase todas as premiações obtidas em nível nacional. A maior parte de seus livros foi contemplada com expressivos prêmios:
Deus de Caim: conquistou o prêmio Walmap (Edinova/RJ/1968)
Caieira: prêmio Remington de Prosa (Editora Francisco Alves/RJ/1977
A chave do abismo (Editora Amazoniada/MT/1981)
Madona dos Páramos: prêmio Ficção Brasília (Editora Antares/RJ/1982)
Último Horizonte (1988/edição totalmente esgotada e não há informações sobre a obra)
Cerimônias do Esquecimento: prêmio Academia Brasileira de Letras – Melhor
Romance (Editora da UFMT/MT/1995)
Conjunctio Oppositorum no Grande Sertão (tese de mestrado/edição do autor/MT/1999)
O salário dos poetas: prêmio Alto Mérito Sócio Cultural (edição do autor/MT/2000)
Rio abaixo dos vaqueiros (edição do autor/MT/2000)
Outras informações sobre o estado de saúde do escritor em instantes.

TIGRES DE BORGES E TIGRES DE CORTÁZAR (Aclyse de Matos) - 01/09/2004

Tigres de Borges e tigres de Cortázar
Aclyse de Mattos
Ricardo Guilherme Dicke mandou trazer para o calor de Cuiabá dois tigres.Eram dois tigres muito literários: um tigre de Borges e um tigre de Cortázar.O povo dizia que aqueles tigres não iam se aclimatar, que eram da Ásia e que Mato Grosso não teria nada a ver com eles.
Ricardo Guilherme Dicke dizia que não, que as mangueiras também vinham da Índia e se deram muito bem no Brasil - falou isso tirando as florzinhas de mangueira que caíam na sua tigela de doce de maneira a deixar claro que mangueiras e tigres podiam muito bem habitar em Cuiabá."Além do mais estes tigres não vem da Ásia - como a lua.
Vem de Buenos Aires"Isto posto e dito isto foram todos ao porto ver a chegada dos tigres de Ricardo Guilherme Dicke. Estavam em duas jaulas que o guindaste temerosamente depositou no chão lamacento do porto, sob protestos do povo e reclamações de Guilherme Dicke. "Na picape. Na camionete. Estão pensando o quê ?"Resolvida a pendenga, a velha picape Willys Overland foi se arrastando com a traseira pesada de duas jaulas rumos às chácaras do Coxipó, um bairro tranqüilo e afastado onde todas as casas tinham quintais com mangueiras e agora com...tigres.
"Os tigres são muito parecidos" argumentou o dentista e poeta Moisés Martins "como você sabe qual é o tigre de Borges e o tigre de Cortázar ? "Ricardo Guilherme Dicke apontava para pequenos detalhes nas garras, na pelagem e nos caninos e discursava horas sobre a semiótica dos tigres."Sirva-se de mais um bolinho frito, Moisés"A vizinhança temia sobremaneira os tigres do quintal de Dicke. Ainda mais quando saíam a passear pelas ruas do Coxipó."Olhe lá, Moisés, o tigre de Cortázar urina nos cachorros e o tigre de Borges dilacera os portões da vizinhança para afiar as garras. É fácil distinguir um do outro."" Que lindinhos." Comentava pré-molando o incisivo poeta."Que desgraça" reclamava a vizinha varrendo as farpas do portão "Mariinha, traz o seca-poço para enxugar seu cachorro. Não. Não deixa ele se arrepiar na sala. Nãããooo...!
Meu pai que ia sempre emprestar livros de detetives e de crimes de "seu" Henrik Dicke - o pai holandês de Guilherme Dicke e que terminou sua vida se suicidando e deixando grandes mistérios por se resolver no calor tropical de Cuiabá - mas como ia dizendo, meu pai declarava na saída do Banco do Brasil que Ricardo Guilherme Dicke havia superado o pai." "Seu" Henrik criava aqueles cães pastores europeus e aquela aura de mistério"Todos se lembravam das peripécias dos cães pastores."O Simenon uma vez acuou dois bandidos no quintal, mas acabou liberando o que era menor de idade" declarou Renato Pinto já com o empréstimo liberado para investir em gado."E aquele mastim catalão, o Montalban, que corria pelas ruas na festa de São Benedito apavorando os fiéis e o pessoal do andor tinha que correr junto, para o mesmo lado, senão o Santo caía" frisou o velho Gabriel Müller que viera quitar o financiamento da soja.Subitamente todos pararam de rir como se as taxas de juros tivessem aumentado. Na realidade, foram os tigres de Borges, e os tigres de Cortazar que fizeram um pequeno passeio na imaginação dos senhores, em frente ao Banco do Brasil."Ainda bem que ele não é meu vizinho de cerca na fazenda".
No mínimo o tigre de Cortazar havia degolado quatrocentas e cinqüenta rezes para o tigre de Borges beber o sangue quente e sagrado das vacas - ó pecado dos pecados na sua velha e emangueirada Índia."Veja bem" palestrava Guilherme Dicke "é fácil distinguir Júlio de Jorge Luis" foi assim que ele batizara o tigre de Cortazar e o tigre de Borges, respectivamente e nesta mesma ordem."Jorge Luis é o que está fazendo poses para o fotógrafo de 'A GAZETA'. Júlio é o que ameaça devorar o fotógrafo se ele disparar o flash""Ah! Entendi" declarou o jornalista Onofre Ribeiro, mineiro de nascimento e mato-grossense de opção. "Não! Não dispare o flash! Ai ai ai!"A vizinhança reclamava e decretava que tudo de ruim que acontecia era culpa dos tigres."Minhas galinhas não botam mais ovos!""O carteiro não passa nesta rua! ""O namorado de minha filha se mijou todo e desmanchou o namoro"Guilherme Dicke era categórico: "Você confunde galinha com frango depois quer que eles ponham ovos" "Quem é que precisa receber contas e notícias ruins"? "O namorado de sua filha era um frouxo e tava louco para desmanchar, só aproveitou a deixa". E desfechava, irrefutável. "Mas ninguém vem assaltar por aqui"Apesar das considerações de Guilherme Dicke era inegável que os tigres se sentiam deslocados.
O tigre de Borges saía garboso como quem fosse pisar na grama sangrenta dos templos de Angkor Vat e atolava-se na lama ressecada das margens do Rio Coxipó. Júlio, o tigre de Cortázar, fazia incursões noturnas pronto para devorar famílias de imigrantes italianos no bairro da Boca e encontrava casebres de taipa socada de indinhos moreninhos. Trabalho dobrado. As casas eram afastadas e o efeito andança o fazia atacar até 3 casas por noitada.De manhã, quando Guilherme Dicke vinha abrir a jaula furada e alimentá-los com nacos de piranha e quartos de porcos do mato caititu eles se mostravam enfastiados. Sem dúvida faltava clima para a felicidade daqueles tigres literários.
O marketeiro (e poeta) Aclyse de Mattos afirmava que Dicke trouxera os tigres só para enlameá-los e cobri-los de cal, de moscas e de febres para provar que a selva de Mato Grosso era mais rigorosa que a da Índia Imaginária ou a de Buenos Aires Recordada.A Semioticista Lucia Helena Possari efetuou sérios trabalhos sobre a pelagem dos tigres, mas o veterinário detectou verminose nos bichos. A vizinhança estranhou quando Júlio e Jorge Luis saíram comendo matinhos e capim como os cachorros barrigudos da redondeza.Num último e desesperado esforço o gastroenterologista (e poeta) Ivens Cuiabano Scaff aventou com Guilherme Dicke a possibilidade de trocar seus tigres pelas onças pintadas do Zoológico da Universidade Federal de Mato Grosso."Olha só, Dicke, as onças já estão acostumadas ao pantanal, aos espinheiros, ao cerrado".Dicke procurou no catálogo de Borges e de Cortázar, mas no máximo encontrou jaguares. Achou que o problema era os encontros consonantais e consultou o advogado (e poeta) Benedito Silva Freire em um terreno espírita, para decepcionado ver, que não tinha como recorrer da sentença, quanto mais das figuras de retórica, esses tropos mais que tropicais que barroquizam as obras da literatura, graças a Deus proliferantes na América de língua Ibérica.Naquela noite, decepcionado Guilherme Dicke com as reações de pobreza imaginativa do povo do Coxipó, e até dos pares de Cuiabá, e até com a aclimatação negativa que os tigres experimentaram, ele fechou-se na jaula com os bichos famintos após lambuzar-se de sangue de zebus e alcatras de vacas holandesas, homenagem a seu pai, para ser devorado e adorado pelo estômago das feras.Passou-lhe pela cabeça o suicídio do pai, a mediocridade da vida provinciana, as dificuldades da vida de todos os artistas que não encontram para quem dizer de sua imaginação, do seu parto de novos símbolos que as pessoas não conseguiam engolir, quanto mais digerir e responder na linguagem sedutora dos autores e poetas revolucionários.
Desiludido com os tigres que acabaram se nivelando com os cães, com as galinhas e com as vizinhas (quando ele esperava o contrário, que os tigres levantassem a imaginação das vizinhas, das galinhas e dos cães), Guilherme Dicke abraçou-se a seus livros e deitou-se entre os tigres, sonado como um santo-demônio, incompreendido por seu tempo e seus pares. Pronto para enfrentar a morte e amar o esquecimento.Na luminosa manhã do dia seguinte, quando a mulher de Dicke foi abrir a jaula espantada porque o marido não o fizera ainda, encontrou os dois tigres acompanhados por um estranho lobo-onça-demônio e desandou a chorar quando adivinhou no seu andar agressivo e contido que aquele não era nem um tigre de Borges, nem um tigre de Cortázar, mas um lobo de Dicke.E a Academia reconheceu que os tigres e lobos podiam perfeitamente habitar as chácaras da Rua Joinville, do bairro do Coxipó, da capital Cuiabá, do interior do Mato Grosso e dos sertões do Brasil, e que não era proibida a importação de tigres imaginários porque a poesia realmente não tem a mínima fronteira.
Aclyse de Mattos é professor universitário, contista e poeta.
É autor de Quem muito olha a lua fica louco

DO CAIS AO SERTÕES LITERÁRIOS DO BRASIL

Do cais ao sertão Sertões literários do Brasil
Texto publicado em 01 de Julho de 2008 - 07h20
por Alessandro Atanes *


De suas viagens e de sua literatura pelos sertões Euclides da Cunha escreveu uma vez sobre Vicente de Carvalho, poeta do litoral de São Paulo. No prefácio a Poemas e canções (1908), o autor de Os sertões (1902) comenta a relação de Carvalho com o litoral, o que contribuiu para a formação da imagem de poeta do mar. No mundo que é a literatura, o sertão nomeou o mar.

Em sua desimportância frente aos Sertões e aos Poemas e canções, este simples Porto Literário percorrerá o sentido inverso, em direção ao Centro Oeste para escrever sobre Toada do Esquecido, do escritor mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke.

Sendo Euclides da Cunha o fixador literário do sertão nordestino, o sertão de Minas Gerais é a escrita de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas. Por causa da Guerra de Canudos, podemos tomar o primeiro por drama épico, tanto que já foi adaptado ao teatro; o outro, por causa da linguagem que se esparrama pelo sertão, é narrativa poética.

Até aí temos a guerra e a linguagem, duas ações humanas. Já a relação entre o humano e o sagrado é o lugar do mito, que tudo abarca. O romance O salário dos Poetas (2001) e a novela Toada do Esquecido (2006) – ambos de uma escrita de matriz roseana – são assim, abarcadores do mundo. Além da própria estatura literária imensa, a obra de Ricardo Guilherme Dicke ainda sobe nos ombros de Rosa e Euclides.

O sertão da linguagem de invenção de Ricardo Guilherme Dicke reúne tudo. É o sertão amazônico do Mato Grosso, dos campos queimados cortados por estradas percorridas por kombis e jipes que se insinuam até a linha de queimadas que acompanha o horizonte. É um sertão dos dias grandes e das noites escuras; dos garimpos que arregaçam a terra e dos agronegócios que varrem a selva.

No sertão de Dicke, o mito não é só objeto, é também componente narrativo. Um exemplo são os personagens dessas duas histórias, todos arquétipos: temos o general exilado, o poeta com malária e o coveiro filósofo no Salário dos Poetas; e na Toada do Esquecido temos quatro personagens que fogem de um garimpo. Eles acabam de assaltar todo o ouro extraído do lugar e cruzam os “horizontes carbonizados” cada um vestido com uma fantasia: El Diablo, o Cavaleiro, a Morte e Zabud, o deus mesopotâmico das moscas. Sem contar que El Diablo traz um papagaio que não cessa de apontar o horrível do mundo, que a Morte (e depois o Cavaleiro e Zabud) observa continuadamente as horas no pulso, que animais os acompanham num trailer atado ao automóvel, que folhas de dicionário são usadas na limpeza pessoal, que a comida não lhes pára no estômago, que todas as estações nas línguas do mundo sintonizadas no rádio da kombi só trazem notícias, notícias, notícias e nenhuma música.

O objetivo da fuga é alcançar Vila Bela, a primeira capital do Estado, na fronteira com a Bolívia, cidade em que esperam não encontrar o cerco de bandidos, policiais e aventureiros que era preparado nas cidades cortadas pela estrada principal, todos comprados pelos senhores do garimpo.

El Diablo tem razão com seu bendito papagaio: mundo horrível, mundo horroroso, mundo horrendo, mundo hórrido, aqui são esses campos que foram algum dia verdejantes e copados, densos de pássaros cantando, de animais aninhando-se nas suas profundidades, mas que agora são o quê? Nada a não ser desertos, nada mais que desertos, ninhos do silêncio, nada mais que silêncio onde não cai a chuva, de onde fogem todos os seres vivos, que Deus não olha, onde vêm apenas aninhar-se as feras fugidas da chamada civilização, os homens como nós, ah, o horror, horror, horror... E o Cavaleiro suspira e sente fome.

A obra de Dicke ainda reúne o tempo acumulado, desde o massacre da auto-afirmação da República no final do século XIX, que é descrita em jornalismo e literatura por Euclides da Cunha; até a ocupação do sertão da primeira metade do século XX, como praticou o Marechal Rondon e o próprio Euclides da Cunha (os dois foram colegas do curso de Engenharia do Exército, onde o autor chegou a tenente; em 1905, já a serviço do Ministério das Relações Exteriores, ele chefiaria uma missão oficial pelo Rio Purus, nas fronteiras amazônicas).

As missões de ocupação e exploração constituem dois dos aspectos daquele período de acentuado interesse na busca e promoção da identidade nacional no qual também são publicados estudos fundamentais sobre a identidade brasileira (Formação do Brasil Contemporâneo, Raízes do Brasil, Casa Grande e Senzala, todos da década de 30). Marcos da conquista do sertão podemos considerar a construção de Brasília (1960) no plano físico; e, no plano simbólico, a fabulação literária de Guimarães Rosa (seu primeiro livro, Sagarana, é de 1946; o Grande sertão: veredas é de 1956).

A escrita de Dicke, apesar de mítica (na forma e no conteúdo), é também mimética, isto é, tem a capacidade de nos representar o real. Mas não é o real do que “realmente ocorreu” como nos filmes baseados em “fatos reais”, e sim o real dos sentidos: a própria dificuldade de leitura, por um lado, ou os efeitos de calor, imensidão e paralisação do tempo, por outro.

O Cavalheiro olha para o fim da estradinha que se perde no horizonte, por onde sumiu Zabud. A noite vem entrando com seu frio. O som do rádio cada vez diminui mais, a bateria está no fim, o fogo apagou, ninguém está com fome, todos em silêncio sentem a noite cair lentamente, com o lentor das coisas que nunca mudam ou se adiam. Está tão escuro que não se dá para ver mais nada, já não se enxergam entre si, nem o vasto céu, nem a lonjura da terra com seus eternos campos queimados, eternidade de tocos negros que os homens do lado de lá deixaram como marcas de sua passagem. As horas vão se escoando com a mesma lentitude pelo vago funil do tempo que filtra tudo.

Esse é o sertão de Ricardo Guilherme Dicke: um sertão arrasado, ainda que tão imenso.

Referências
Ricardo Guilherme Dicke. Toada do Esquecido & Sinfonia Eqüestre. Cuiabá: Cathedral Publicações e Carlini & Caniato, 2006.

Ricardo Guilherme Dicke. O Salário dos Poetas. Cuiabá: Secretaria de Cultura de Mato Grosso, 2001.