25 de jun. de 2008

O arquito da poesia, João Cabral de Melo Neto























João Cabral de Melo Neto
Nasceu em Recife (PE) em 1920. Ingressou na carreira diplomática aos 25 anos, exercendo suaprofissão em diversos países, por mais de quarenta anos. Aposentado, reside atualmente no Rio de Janeiro. A cultura espanhola, que o poeta conheceu a fundo quando viveu em Barcelona e Sevilha, deixou muitas marcas na poesia de João Cabral. O escritor faz parte da Academia Brasileira de Letras desde 1968.
Em 1994, a editora Nova Aguilar publicou em volume único a obra completa do escritor, João Cabral de Melo Neto inaugurou um novo modo de fazer poesia em nossa literatura. A essência de sua atividade poética mostra a tentativa de desvendar os elementos concretos da realidade, que se apresentam como um desafio para a inteligência do poeta. Sempre guiado pela lógica, pelo raciocínio, seus poemas evitam análise e exposição do eu e voltam-se para o universo dos objetos, das paisagens, dos fatos sociais, jamais apelando para o sentimentalismo. Por isso, o prazer estético que sua poesia pode provocar deriva sobretudo de uma leitura racional, analítica, não do envolvimento emocional com o texto.
Essas características levaram a crítica a ver na obra de João Cabral uma "ruptura com o lirismo" ou a considerar sua expressão poética como "antilírica". Não devemos, entretanto, supor que essa relação do poeta com o mundo concreto, objetivo, produza apenas textos descritivos. Na verdade, suas descrições ora acabam adquirindo valor simbólico, ora acabam denunciando a crítica social que o poeta pretende levar a efeito.
Pedra do sono, seu primeiro livro, apresenta elementos do surrealismo, a começar pelo título (sono). Segundo o próprio poeta, o que se pretendeu nesse livro foi "compor um buquê de imagens em cada poema,- as imagens revelam matéria surrealista no sentido de oníricas, subconscientes... " . O sono e o sonho são temas freqüentes e importantes nessa obra. O próprio autor considera sua primeira obra como "um livro falso", cujo rendimento artístico não o satisfez.
O engenheiro, embora inclua ainda poemas de caráter surrealista, traz já as bases de sua nova concepção de poesia, segundo a qual o poema deve resultar de uma atitude racionalista, objetiva, diante da realidade concreta. Uma atitude de quem controla racionalmente as emoções.
Psicologia da composição mostra o amadurecimento daquele conceito de poesia rascunhado no livro anterior. O poeta rejeita - em poemas de caráter metalingüístico - a inspiração e assume, não sem hesitar, a objetividade diante do ato de escrever. Por isso, o livro apresenta poemas com uma linguagem racional, lógica, marcados pelo extremo cuidado formal. Muitas vezes sente-se o poeta questionando a validade do próprio ato de escrever.
Os livros seguintes - O cão sem plumas, O rio e Morte e vida severina - mostram um poeta mais diretamente voltado para a temática social, analisando a realidade geográfica, humana e social do Nordeste.
Morte e vida severina, sua obra mais conhecida, é um poema narrativo subintitulado auto de Natal pernambucano, que trata da caminhada de um retirante - Severino - do sertão até a zona litorânea, em busca de condições para sobreviver à seca. A semelhança com um auto natalino ocorre no final, quando, ao presenciar o nascimento de uma criança, o retirante renuncia à intenção de matar-se.
Paisagem com figuras traça paralelos entre duas terras que o poeta conhece bem: a Espanha e Pernambuco.
O Auto do frade tem como assunto o dia da morte do rebelde frei Caneca.
Agrestes é uma coletânea de poemas de temas diversos. Eis um poema desse livro:
O luto no SertãoPelo sertão não se tem comonão se viver sempre enlutado;

lá o luto não é de vestir,é de nascer com, luto nato.

Sobe de dentro, tinge a pelede um fosco fulo: é quase raça;

luto levado toda a vidae que a vida empoeira e desgasta.

E mesmo o urubu que ali exerce,negro tão puro noutras praças,

quando no sertão usa a batinanegra-fouveiro, pardavasca.

Obra
Pedra do sono (1942); O engenheiro (1945); Psicologia da composição (1947); O cão sem plumas (1950); O no (1954); Morte e vida severina (1956); Paisagem com figuras (1956), Uma faca só lâmina (1956); A educação pela pedra (1966); Museu de tudo (1975); Auto do frade (1984); Agrestes (1985); Crime na Calle Relator (1987).



O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI
— O meu nome é Severino,

como não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria;

como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,

fiquei sendo o da Mariado finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:há muitos na freguesia,

por causa de um coronel

que se chamou Zacarias

e que foi o mais antigo

senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem fala

ora a Vossas Senhorias?

Vejamos: é o Severinoda Maria do Zacarias,

lá da serra da Costela,

limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:se ao menos mais cinco havia

com nome de Severino

filhos de tantas Marias

mulheres de outros tantos,

já finados, Zacarias,vivendo na mesma serra

magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida:na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra,

no mesmo ventre crescido

sobre as mesmas pernas finas,

e iguais também porque o sangue

que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos

iguais em tudo na vida,

morremos de morte igual,

mesma morte severina:

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte,

de fome um pouco por dia(de fraqueza e de doença

é que a morte severina

ataca em qualquer idade,e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos

iguais em tudo e na sina:

a de abrandar estas pedras

suando-se muito em cima,

a de tentar despertar

terra sempre mais extinta,

a de querer arrancar

algum roçado da cinza.

Mas, para que me conheçam

melhor Vossas Senhoria

se melhor possam seguira história de minha vida,

passo a ser o Severino

que em vossa presença emigra.

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