Tigres de Borges e tigres de Cortázar
Aclyse de Mattos
Ricardo Guilherme Dicke mandou trazer para o calor de Cuiabá dois tigres.Eram dois tigres muito literários: um tigre de Borges e um tigre de Cortázar.O povo dizia que aqueles tigres não iam se aclimatar, que eram da Ásia e que Mato Grosso não teria nada a ver com eles.
Ricardo Guilherme Dicke dizia que não, que as mangueiras também vinham da Índia e se deram muito bem no Brasil - falou isso tirando as florzinhas de mangueira que caíam na sua tigela de doce de maneira a deixar claro que mangueiras e tigres podiam muito bem habitar em Cuiabá."Além do mais estes tigres não vem da Ásia - como a lua.
Vem de Buenos Aires"Isto posto e dito isto foram todos ao porto ver a chegada dos tigres de Ricardo Guilherme Dicke. Estavam em duas jaulas que o guindaste temerosamente depositou no chão lamacento do porto, sob protestos do povo e reclamações de Guilherme Dicke. "Na picape. Na camionete. Estão pensando o quê ?"Resolvida a pendenga, a velha picape Willys Overland foi se arrastando com a traseira pesada de duas jaulas rumos às chácaras do Coxipó, um bairro tranqüilo e afastado onde todas as casas tinham quintais com mangueiras e agora com...tigres.
"Os tigres são muito parecidos" argumentou o dentista e poeta Moisés Martins "como você sabe qual é o tigre de Borges e o tigre de Cortázar ? "Ricardo Guilherme Dicke apontava para pequenos detalhes nas garras, na pelagem e nos caninos e discursava horas sobre a semiótica dos tigres."Sirva-se de mais um bolinho frito, Moisés"A vizinhança temia sobremaneira os tigres do quintal de Dicke. Ainda mais quando saíam a passear pelas ruas do Coxipó."Olhe lá, Moisés, o tigre de Cortázar urina nos cachorros e o tigre de Borges dilacera os portões da vizinhança para afiar as garras. É fácil distinguir um do outro."" Que lindinhos." Comentava pré-molando o incisivo poeta."Que desgraça" reclamava a vizinha varrendo as farpas do portão "Mariinha, traz o seca-poço para enxugar seu cachorro. Não. Não deixa ele se arrepiar na sala. Nãããooo...!
Meu pai que ia sempre emprestar livros de detetives e de crimes de "seu" Henrik Dicke - o pai holandês de Guilherme Dicke e que terminou sua vida se suicidando e deixando grandes mistérios por se resolver no calor tropical de Cuiabá - mas como ia dizendo, meu pai declarava na saída do Banco do Brasil que Ricardo Guilherme Dicke havia superado o pai." "Seu" Henrik criava aqueles cães pastores europeus e aquela aura de mistério"Todos se lembravam das peripécias dos cães pastores."O Simenon uma vez acuou dois bandidos no quintal, mas acabou liberando o que era menor de idade" declarou Renato Pinto já com o empréstimo liberado para investir em gado."E aquele mastim catalão, o Montalban, que corria pelas ruas na festa de São Benedito apavorando os fiéis e o pessoal do andor tinha que correr junto, para o mesmo lado, senão o Santo caía" frisou o velho Gabriel Müller que viera quitar o financiamento da soja.Subitamente todos pararam de rir como se as taxas de juros tivessem aumentado. Na realidade, foram os tigres de Borges, e os tigres de Cortazar que fizeram um pequeno passeio na imaginação dos senhores, em frente ao Banco do Brasil."Ainda bem que ele não é meu vizinho de cerca na fazenda".
No mínimo o tigre de Cortazar havia degolado quatrocentas e cinqüenta rezes para o tigre de Borges beber o sangue quente e sagrado das vacas - ó pecado dos pecados na sua velha e emangueirada Índia."Veja bem" palestrava Guilherme Dicke "é fácil distinguir Júlio de Jorge Luis" foi assim que ele batizara o tigre de Cortazar e o tigre de Borges, respectivamente e nesta mesma ordem."Jorge Luis é o que está fazendo poses para o fotógrafo de 'A GAZETA'. Júlio é o que ameaça devorar o fotógrafo se ele disparar o flash""Ah! Entendi" declarou o jornalista Onofre Ribeiro, mineiro de nascimento e mato-grossense de opção. "Não! Não dispare o flash! Ai ai ai!"A vizinhança reclamava e decretava que tudo de ruim que acontecia era culpa dos tigres."Minhas galinhas não botam mais ovos!""O carteiro não passa nesta rua! ""O namorado de minha filha se mijou todo e desmanchou o namoro"Guilherme Dicke era categórico: "Você confunde galinha com frango depois quer que eles ponham ovos" "Quem é que precisa receber contas e notícias ruins"? "O namorado de sua filha era um frouxo e tava louco para desmanchar, só aproveitou a deixa". E desfechava, irrefutável. "Mas ninguém vem assaltar por aqui"Apesar das considerações de Guilherme Dicke era inegável que os tigres se sentiam deslocados.
O tigre de Borges saía garboso como quem fosse pisar na grama sangrenta dos templos de Angkor Vat e atolava-se na lama ressecada das margens do Rio Coxipó. Júlio, o tigre de Cortázar, fazia incursões noturnas pronto para devorar famílias de imigrantes italianos no bairro da Boca e encontrava casebres de taipa socada de indinhos moreninhos. Trabalho dobrado. As casas eram afastadas e o efeito andança o fazia atacar até 3 casas por noitada.De manhã, quando Guilherme Dicke vinha abrir a jaula furada e alimentá-los com nacos de piranha e quartos de porcos do mato caititu eles se mostravam enfastiados. Sem dúvida faltava clima para a felicidade daqueles tigres literários.
O marketeiro (e poeta) Aclyse de Mattos afirmava que Dicke trouxera os tigres só para enlameá-los e cobri-los de cal, de moscas e de febres para provar que a selva de Mato Grosso era mais rigorosa que a da Índia Imaginária ou a de Buenos Aires Recordada.A Semioticista Lucia Helena Possari efetuou sérios trabalhos sobre a pelagem dos tigres, mas o veterinário detectou verminose nos bichos. A vizinhança estranhou quando Júlio e Jorge Luis saíram comendo matinhos e capim como os cachorros barrigudos da redondeza.Num último e desesperado esforço o gastroenterologista (e poeta) Ivens Cuiabano Scaff aventou com Guilherme Dicke a possibilidade de trocar seus tigres pelas onças pintadas do Zoológico da Universidade Federal de Mato Grosso."Olha só, Dicke, as onças já estão acostumadas ao pantanal, aos espinheiros, ao cerrado".Dicke procurou no catálogo de Borges e de Cortázar, mas no máximo encontrou jaguares. Achou que o problema era os encontros consonantais e consultou o advogado (e poeta) Benedito Silva Freire em um terreno espírita, para decepcionado ver, que não tinha como recorrer da sentença, quanto mais das figuras de retórica, esses tropos mais que tropicais que barroquizam as obras da literatura, graças a Deus proliferantes na América de língua Ibérica.Naquela noite, decepcionado Guilherme Dicke com as reações de pobreza imaginativa do povo do Coxipó, e até dos pares de Cuiabá, e até com a aclimatação negativa que os tigres experimentaram, ele fechou-se na jaula com os bichos famintos após lambuzar-se de sangue de zebus e alcatras de vacas holandesas, homenagem a seu pai, para ser devorado e adorado pelo estômago das feras.Passou-lhe pela cabeça o suicídio do pai, a mediocridade da vida provinciana, as dificuldades da vida de todos os artistas que não encontram para quem dizer de sua imaginação, do seu parto de novos símbolos que as pessoas não conseguiam engolir, quanto mais digerir e responder na linguagem sedutora dos autores e poetas revolucionários.
Desiludido com os tigres que acabaram se nivelando com os cães, com as galinhas e com as vizinhas (quando ele esperava o contrário, que os tigres levantassem a imaginação das vizinhas, das galinhas e dos cães), Guilherme Dicke abraçou-se a seus livros e deitou-se entre os tigres, sonado como um santo-demônio, incompreendido por seu tempo e seus pares. Pronto para enfrentar a morte e amar o esquecimento.Na luminosa manhã do dia seguinte, quando a mulher de Dicke foi abrir a jaula espantada porque o marido não o fizera ainda, encontrou os dois tigres acompanhados por um estranho lobo-onça-demônio e desandou a chorar quando adivinhou no seu andar agressivo e contido que aquele não era nem um tigre de Borges, nem um tigre de Cortázar, mas um lobo de Dicke.E a Academia reconheceu que os tigres e lobos podiam perfeitamente habitar as chácaras da Rua Joinville, do bairro do Coxipó, da capital Cuiabá, do interior do Mato Grosso e dos sertões do Brasil, e que não era proibida a importação de tigres imaginários porque a poesia realmente não tem a mínima fronteira.
Aclyse de Mattos é professor universitário, contista e poeta.
É autor de Quem muito olha a lua fica louco
Um comentário:
dos poetas desse mato é o meu preferido.
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